Assembleia da Tradição
Druídica Lusitana
Lusitânia, Berço de Tradição,
a propósito da celebração do Juramento Da Aliança Druídica Celta[1]
[1]Cerimónia marcada pela transmissão das linhagens e pelo juramento da Aliança Druídica Céltica pelos três guardiões fundadores, O Grande Druída da Irlanda, o Grande Druída da Lutécia e o Grande Druída da Lusitânia, Irlanda, 23, 24 e 25 de Setembro de 2016.
Por /i\ Adgatia Vatos
Que farei quando tudo arde?
Sá De Miranda
I. LEMBRANÇA
1. Da Mudança Nos Tempos Que Sempre Houve …
Como é que é possível amputar um povo das suas memórias? Existe uma unidade de medida para aquilatar a antiguidade de um povo? De que natureza é a linha que une o seu passado ao seu presente e ao seu futuro? Existe uma continuidade visível nessa linha do tempo? Ou toda ela é feita de momentos de quebra e de religação ao seu núcleo original auroreal, perdido e refeito ao longo do seu extenso transcorrer proto, pré e histórico primevo? Vivemos no tempo e frequentemente nos esquecemos que a nossa vivência do tempo se constitui como o nosso lugar específico de pertença a uma Tradição que em nós se faz caminho e por nós se doa numa narração ou numa história que se conta por meio dos nossos passos, palavras e actos que, como marcos visíveis e indeléveis, dão testemunho da nossa passagem em Abred, o reino da necessidade e da contingência.
De Portugal – e de nós, portugueses – tem sido de uso dizer-se que é nação com uma das mais antigas fronteiras da Europa e uma das mais resilientes e flexíveis culturas do mundo. Contra ventos e marés, em raros períodos de prosperidade e muitos de crises várias económicas e sociais, políticas e morais Portugal afirmando-se, paradoxalmente como uma cultura de diásporas, sempre manteve viva e actualizada a sua matriz cultural identitária. Facto notável e, para muitos difícil de explicar, que cremos ter a ver com a pertença afectiva e simbólica a uma Tradição berço e matriz primordial que se espraiou desde a Ibéria até aos pólos da Gália e da Irlanda, entre outros.
Com efeito, encontramos referências a um horizonte de pertença religioso e simbólico comum em obras de carácter generalista como a Enccyclopédie des Religions de Gerhard J. Bellinger, só para citar um exemplo, no que se refere às religiões pré-históricas, em geral e ao Megalitismo, em particular:
“Fenómeno que caracteriza as civilizações dos megalitos, (…) datadas numa mesma época situada entre o V e o III milénio antes da nossa era. Certos especialistas falam mesmo de uma «religião megalítica» (…), Encontramos vestígios que testemunham a existência da religião megalítica na Irlanda e na Grã-Bretanha, na península escandinava e na Alemanha, na Holanda, na Renânia, em França, em Itália e em Espanha, na África do Norte, na bacia mediterrânica, na península da Anatólia, no Cáucaso, na Arábia, no Irão, na Índia, na China, na Coreia, no Japão, na América do Sul e central e na Ilha da Páscoa.”[1]
Apesar de nesta obra, como em outras aliás, se discutir o relativo isolamento e independência destas culturas entre si ou a possibilidade de partilha e comunicação entre elas, será preciso ter em mente que, de acordo com Mircea Eliade e Ioan P. Couliano, já no anterior mesolítico, paralelamente a uma economia baseada na caça, na “domesticação de animais” e no “valor alimentar dos cereais selvagens”, já se conhecia e utilizava “o arco, a corda, a rede, o barco”[2], descobertas potenciadoras de migrações, diásporas e trocas comerciais e culturais. Por outro lado, ainda, alguns autores portugueses, de forma pioneira, já no século XIX, no amanhecer dos estudos etnográficos, estudavam a possibilidade e o modo como se processavam as relações e as trocas sociais, comerciais, culturais e simbólicas, no interior da península Ibérica, mas também já fora dela, na pré-história e em particular no neolítico, a partir da proveniência comum dos minerais de que eram feitos os mais variados materiais e instrumentos encontrados em pontos geográficos distantes uns dos outros. Caso notável de nomes como Carlos Ribeiro e José Leite de Vasconcelos, de que aliás, este último nos dá nota no primeiro volume da sua monumental Religiões da Lusitânia[3].
Com efeito, em obras menos generalistas, já não apenas a ‘Espanha’ no contexto da cultura da Ibéria, mas especificamente ‘Portugal’ é referido como pólo fundamental da cultura megalítica, nestes termos:
“As culturas matrilocais e eventualmente ginecocratas [sic.] do neolítico produziram os cerca de 50.000 monumentos megalíticos encontrados em Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha do Norte, Suécia e outros locais. Neles se incluem templos, túmulos, menires, estelas.”[4]
Interessa referir também, neste contexto que alguns autores, como Marija A. Gimbutas se referem a uma religião de substracto comum que teria no seu centro Deusas e Deuses descendentes da matriz paleolítica, consubstanciando assim uma religião da «Europa antiga» que teria sido cultuada nestas regiões desde 6500 a. C. até às invasões Indo-Europeias, movimento invasor originado a partir das estepes russas. Para esta estudiosa, a esta cultura da «Europa antiga» teria correspondido uma duração relativamente pacífica de cerca de 20.000 anos, abrangendo paleolítico, neolítico e calcolítico[5]. Os Deuses e Deusas cultuados eram representados sob diversas formas (estatuetas, placas, por exemplo) que correspondem a cultos agrários relacionados com os mistérios dos ciclos da vida, da terra, da gestação dos seres vivos e dos grãos, solidários, pois, dos ciclos das estações, das colheitas, dos ciclos naturais da Lua e das marés[6]. Notavelmente, as representações das Deusas correspondem ao protótipo da mulher-pássaro-serpente, exibindo muitas vezes características andróginas e fazendo-se acompanhar por animais, tais como o touro, o urso, o bode, o veado, ou mesmo o sapo e a tartaruga, entre outros.
Contra Alexandre Herculano, José Leite de Vasconcelos na sua já supracitada obra e corrigindo porventura os exageros de autores como André de Resende ou Fr. Bernardo de Brito, baseando-se nas evidências científicas da etnologia, da antropologia, da arqueologia e até da linguística suas contemporâneas, coligidas por outros e por ele mesmo, não hesita em afirmar que devemos seguramente contar os povos da Lusitânia entre os nossos ascendentes mais directos. Os seus três densos volumes de Religiões da Lusitânia estão, aliás, intencionalmente votados a esse propósito e neles se descreve de forma minuciosa e extensa lugares portugueses, objectos e monumentos, notavelmente do Paleolítico e do Neolítico, tendo a Religião dos Megalitos lugar de considerável destaque. Por outro lado ainda, não hesita, de igual modo, este autor na afirmação até entusiasta deste – porventura – primeiro lugar de pertença:
“São todos estes humildes povos, - os neolithicos e os dos dois períodos antecedentes -, os nossos mais antigos avós. D’elles proviemos physica ou moralmente. Humildes, digo, mas nem por isso menos dignos de que lhes tributemos a glória eterna, pois na sua humildade forão heroes, forão os precursores da civilização de que gozamos.”[7]
Deve ainda sublinhar-se que Leite de Vasconcelos procede ainda a uma constante comparação entre os lugares e achados portugueses, os europeus e mesmo os extra-europeus, sublinhando de forma sistemática, sobretudo as analogias e identidades encontradas entre a Galiza, a Gália e a Irlanda. Leite de Vasconcelos, centrando-se no território português, estabelece, de igual forma, muito assertivamente uma relação de identidade territorial entre este e a Lusitânia, nestes termos:
“(…) se o território de Portugal não concorda exactamente com o da Lusitania, está porém comprehendido no d’ella; que a língua que fallamos é, na sua essência, mera modificação da que usavam os Luso-Romanos; que muitos dos nossos nomes de lugares actuaes provém de nomes pré-romanos; que certas feições do nosso carácter nacional se encontravão já nas tribus da Lusitania; que grande parte dos nossos costumes, superstições, lendas, isto é, da vida psychologica do povo, datão do paganismo; que bom número das nossas povoações correspondem a antigas povoações lusitanicas ou luso-romanas; que, numa palavra, quando estudamos, por meudo, qualquer elemento tradicional da nossa sociedade, nos achamos constantemente em estreita relação com o passado, ainda mesmo como o mais remoto.”[8]
Nesta linha, este estudioso dedica igualmente inúmeras linhas, referências e mesmo um extenso apêndice intitulado “Vestigios do Paganismo”[9] ao seu terceiro volume à afirmação da constatação da sobrevivência sob as mais diversas formas, das quais uma das mais comoventes é a amorosa e supersticiosa conservação das ‘pedras de raio’ ou de machados ou lascas de silex por parte das populações locais, do culto de objectos, lugares, costumes, superstições e nomes, pré-romanos e mesmo pré-lusitanos.
2. … Até ao Ponto de Liberdade
Reza uma lenda, querida aos portugueses, que exasperado com o espírito de rebeldia e resistência beligerante característico dos Lusitanos teria Júlio César proferido a famosa frase: «Há nos confins da Ibéria um povo estranho que nem se governa nem se deixa governar»[10]. Frase que poderia ter sido pronunciada na verdade por qualquer general romano, entre os séculos III a. C. e V da nossa era, mormente, sobretudo no século II a. C. (data das Guerras púnicas, entre Roma e Cartago – cidade-estado fenícia do norte de África –, mormente da IIª que trouxe fortes contingentes Romanos à Península), atendendo ao carácter geral dos Lusitanos, tal como o descreve José Leite de Vasconcelos:
“Rudes e bravios os que vivem nas montanhas, onde o clima é áspero e a vida difficil; de costumes doces, os habitantes do sul, onde gozam de certo bem-estar intelectual, por se acharem mais próximos dos centros de civilização (bacia do Mediterraneo): vemo-los no entanto a todos sempre intrépidos e arrogantes na guerra. A intrepidez militar e o sentimento da independência nacional são os seus caracteres dominantes”[11].
Afirmação, aliás, variegadas vezes reiterada por este autor, sublinhando o carácter indómito, igualitário e paritário de homens e mulheres em situações de combate, revelando valor, honra e apego à liberdade:
“Os indígenas mostraram sempre e por toda a parte a maior energia na defesa dos lares pátrios. Às vezes houve mesmo lances épicos, como no cerco de Cinginia, em que os sitiados responderam arrogantemente a uma proposta de Bruto. As mulheres batiam-se arrojadamente junto dos homens, e nem um grito de desalento soltavam em meio da carnificina das batalhas”.[12]
A superioridade militar dos romanos acabou por afirmar-se, seja pelos números, pelo tipo de armas e estratégias, recorrendo muitas vezes, também a embustes e fomentando divisões e traições que não enobreceram nenhuma das partes. Mesmo assim, como se pode deduzir deste excerto, a subjugação dos Lusitanos não foi fácil e nunca foi segura:
“Podemos admitir que, com a expedição de Cesar, o território lusitano ficava quasi todo sujeito aos Romanos. Digo quasi, e não todo, porque os Lusitanos eram por natureza indómitos, e, com tanto lhes restassem alguns recursos, não soffreriam sem dificuldade o domínio estrangeiro, sobretudo nos primeiros tempos, e porque em 48, como se verá, temos noticia de novos feitos das armas romanas na Lusitania, o que é signal d’esse espírito de espontânea rebeldia. De mais a mais, nas partes remotas da Gallecia havia ainda rincões que só foram subjugados por Augusto.”[13]
É um lugar comum dizer-se que as histórias da História correspondem em larga medida à narrativa dos ‘vencedores’. Não obstante, nem sempre meditamos mais longamente acerca nem deste ‘cliché’, nem acerca da possibilidade da inexistência de ‘vencedores’ e ‘vencidos’ num cenário de guerra, circunstância que todos os dias os nossos actuais conflitos armados põem tragicamente em evidência. Sob a designação lata de ‘paganismo’ ou de ‘pagão’, sob as ‘definições’ vagas de ‘não monoteísta’ ou de ‘sem baptismo’ se classificam toda uma série de manifestações religiosas e espirituais, circunstância complexa cuja dilucidação crítica não faremos aqui. Limitar-nos-emos apenas tão só a constatar também estes outros dois lugares comuns de qualquer mediana história das religiões comparada: nem as religiões ditas pagãs, actualmente em exercício ou não, são ‘simplesmente’ ‘politeístas’ (pois frequentemente têm originalmente um princípio, geralmente desdobrado em três – criador, continuador e destruidor ou de regresso ao primeiro, caso notável do Hinduísmo), nem são desprovidas de formas de ‘baptismo’, apresentação, protecção ou purificação face ao Divino… Ao contrário do que muitos pensam, bem no início da era cristã, havia muitos mais motivos de aliança – e, de facto, essas alianças existiram - entre os primeiros cristãos e os Lusitanos do que entre estes últimos e os Romanos[14]. De entre as concepções ‘estranhas’ aos romanos destacaríamos um diverso entendimento de espaço e de tempo solidário da noção de “Bosques Sagrados” e de nemeton, concomitantemente uma vivencia quietista da Natureza bem diversa da noção Romana, arreigada à noção de urbe; a vivência efectiva de uma condição feminina paritária e igualitária; uma noção consuetudinária da honra, baseada no valor da promessa e da palavra dada diversa da do direito romano (isto apesar da ideia moral da fides, tão cara à Roma da res publica, teorizada por Cícero[15]); uma concepção religiosa mais próxima de uma espiritualidade abstracta que dispensa a mediação de ídolos e templos materiais que para os romanos se podia revelar incompreensível ao ponto de suporem alguns povos da península (notavelmente os da Gallecia) como sendo ateus, visto que algumas tribos não representavam os Deuses de forma material; um apreço pela liberdade individual dos povos autóctones e pela autodeterminação, insuportável aos romanos da Roma que aspirava a um vasto território ‘conquistado’ e a uma jurisdição sob este de tipo imperial, isto é, com provas de vassalagem, impostos, tributos e o reconhecimento de uma superioridade cultural, tecnológica e moral; há pois uma noção de proselitismo de tipo imperialista e normativo que, no limite não era compatível com a ideia e a vivência de liberdade descentralizada Lusa e Céltica (mais próximas da mundividência fenícia ou mesmo cartaginesa – tradicionais rivais e adversários de Roma), mas que acabou por aproximar cristãos e romanos, cimentando a sua aliança.
Se é certo, como afirma José Leite de Vasconcelos que “Os Celtas celtizaram o que cá se lhes deparou, como depois delles os Romanos romanizaram o que era céltico e indígena, e em seguida os Christãos christianizaram o que era romano”, e que “factos semelhantes se encontram na história religiosa de todos os povos”[16], esse processo complexo de ‘aculturação’ contem em si mesmo formas de ocultamento de traços culturais e cultuais, de sobrevivência, de reinvenção, de deformação e de conservação, mas também de destruição.
II. ESPERANÇA
1. Da Constância no Amor …
Como se sabe, segundo César, os Druidas da Gália iam acabar a sua instrução na Grã-Bretanha, onde, de acordo com muitos textos lendários também se deslocavam os Druidas da Irlanda com o mesmo fito. Não sabemos se os Druidas Lusitanos tomavam o mesmo rumo…
Para os Celtas O Outro Mundo ou o Além Maravilhoso era representado sob a forma de ilhas localizadas a ocidente ou a norte do mundo:
“Os deuses irlandeses, ou Túatha Dé Dánam, tribos da deusa Dana vieram com os seus talismãs maravilhosos de quatro ilhas do norte do Mundo e a Irlanda, com a sua província central de Meath (Mide, meio) é, ela própria, uma ilha divina.”[17]
Sabemos também que na época de César “a ilha por excelência parece ter sido a Grã-Bretanha,” (Albion ou Albio, a branca, a ilha das falésias brancas) “pois era lá que, no dizer de Júlio César (e dos textos irlandeses), os druidas iam receber a sua instrução, estudar a ciência sagrada e consolidar sua ortodoxia doutrinal”[18]. Sabemos, de igual modo, que muitas destas ilhas míticas eram habitadas exclusivamente por mulheres e que existiram colégios sacerdotais femininos em ilhas gaulesas como em Sein (Sena).
Um dos momentos mais trágicos vividos pela Tradição, narrado por Tácito, foi precisamente, aquando da revolta da Bretanha, no século I da nossa era, os exércitos romanos arrasaram o santuário druídico de Anglesey na ilha de Mona e chacinaram todos os que lá se encontravam. De acordo com os autores que vimos coligindo, seja pela perseguição a que foram votadas as classes sacerdotais Druídicas por parte dos Romanos antes e após a sua conversão ao Cristianismo, seja pela acção da erosão dos tempos persecutórios medievais e renascentistas, houve uma quebra na transmissão da linha que unia passado, presente e futuro, ao ponto de afirmarem o que se segue:
“A classe sacerdotal bretã não sobreviveu, a sua cristianização foi mais precoce que na Irlanda. Toda a herança intelectual dos druidas foi confiada aos bardos, os quais, na Irlanda não faziam parte da classe sacerdotal. Todas as organizações actuais que se reclamam do druidismo são criações ex nihilo, sem qualquer valor tradicional”[19]…
Para se entender todo o alcance do que esta eventual ‘quebra’ de linhagem significou é necessário ter em conta as funções e conhecimentos de que eram portadores os Druidas.
Segundo Guyonvarc’h e Le Roux:
“ – Os druidas são sacerdotes. – os vates são especialistas da adivinhação. / Os bardos ocupam-se de literatura e de poesia. O sacerdócio está por outro lado completo visto que os druidas têm nas suas atribuições:/1- os três aspectos religiosos definidos por César: - Teologia e especulação metafísica (de rebus divinis); - Sacrifícios (sacrificia publica ac privata); Cultos, ritos e práticas diversas (religiones). 2. A função de mestres [professores] com a transmissão da doutrina tradicional. 3. A função de juízes et ipso facto, a de conselheiros do poder político, colaboradores da manutenção da coerência da ordem social, não no plano real [royal, do rei] de equilibradores e de distribuidores de beneficios, mas no plano do sacerdote intermediário entre os deuses e os homens”
Para estes autores, na Irlanda, a estas funções, o druida acrescentaria também (?) a guerra: “ […] todas as funções conhecidas: religio, guerra, justiça, ensino, poesia, sátira, adivinhação, previsões, sacrifício”[20].
Não obstante, pois, a Tradição persistiu[21]– muito possivelmente, sobretudo – justamente através da acção dos bardos[22] – irmanando a partir da Irlanda, mais tardiamente cristianizada – e das suas criações e nas suas Saudosas rememorações poéticas, seja ao nível do folclore ou mesmo da poesia erudita, como que refazendo um fadado caminho de regresso, através da Europa medieval, em direção ao Sul e ao local porventura primevo da sua origem mais remota e megalítica…
No território que hoje é Portugal o trovadorismo (do francês troubadour) galaico-português, oriundo, em parte, pois, da Occitânia (Provença, Sul de França), foi um movimento literário e poético que teve o seu início na Idade Média no século XII e se prolongou, sensivelmente até ao século XIV, confundindo-se com o movimento histórico da Reconquista e com a fundação da nacionalidade portuguesa. São as famosas Cantigas de Amor (cantiga em voz masculina), de Amigo (cantiga em voz feminina)[23] e de Escárnio e Maldizer[24]. Das, sensivelmente, quatro teses acerca da origem deste importante movimento literário, a saber a sua origem arábica, popular, latina ou litúrgica, que não discutiremos aqui[25], destacaríamos tão só que a reminiscência “das cantigas de mulher do lirismo mozarábico”[26] talvez não chegue para explicar cabalmente o lirismo feminino de raízes pré-trovadorescas que caracteriza as Cantigas de Amigo[27]. A figura da donzela ou da menina e moça que as protagoniza será retomada no século XVI por Bernardim Ribeiro na sua célebre Menina e Moça ou Saudades. Para a filósofa mística cristã Dalila Pereira da Costa, as origens pagãs de Menina e Moça relevam de uma fonte celta primeva, constituindo esta origem o tema fundamental da obra de Bernardim Ribeiro:
“O Livro das Saudades, será o nosso romance negro. O mais sujeito à implacável força do Fado, do amor Fatal, da mulher-fada da morte. (…) Ele será assim o livro mais totalmente pagão, ou pré-cristão, da nossa cultura” [28].
Vários autores têm salientado a linha de continuidade entre o trovadorismo medieval e a poética renascentista no seu culto da Mulher (sob até a forma divinizada da Virgem Maria, notavelmente em algumas das nossas Cantigas de Amor) e da sua voz[29]. O amor cavaleiresco presente na novela de Bernardim Ribeiro, segundo Dalila Pereira da Costa, longe de dar condescendentemente conta da submissão das mulheres que assumem a voz narrativa, revela, antes, uma experiência do amor que esta autora identifica como tipicamente Celta, pois significa, não uma aspiração, mas descreve antes uma vivência do amor em complementaridade, partilha e igualdade. Para esta autora a experiência do amor de que aqui se dá conta é pré-cristã e mesmo anterior ao ciclo bretão arturiano.
2. … Até à ‘nova ’ Aliança
Cremos que é a Voz da Tradição que em Portugal ecoa na voz dos seus bardos, aedos, trovadores e poetas, desde a Idade Média, passando pelo renascimento, pelos místicos franciscanos – no seu amoroso ardor pela Natureza e pela Virgem (vide os versos de S. João da Cruz, o poeta da Serra da Arrábida), aportando aos séculos XIX e XX sob as vestes da Saudade epifanicamente revelada na poesia do poeta-profeta nortenho Teixeira de Pascoaes e da filosofia do seu amigo Leonardo Coimbra, entre outros, e que é Ela que, assim, ecoa pelo movimento cultural da Renascença Portuguesa e, também, no Orpheu e na obra de Pessoa. Existe um panenteísmo pampsiquista Lusitano, tutelado pela Saudade Portuguesa que, mais uma vez, como outrora, desde, porventura, os megalitos do lugar dos Almendres (cerca do VI-V milénio a, C.), até aos megalitos Bretãos e Irlandeses (cerca do III milénio a. C.) encontra aqui e agora o seu Tempo e Lugar de re-encontro, re-alvorecer e de regresso: a transmissão das linhagens e o juramento da Aliança Druídica Céltica, pelos três guardiões fundadores, O Grande Druída da Irlanda, o Grande Druída da Lutécia e o Grande Druída da Lusitânia Este é o tempo mítico ou sagrado, mas também histórico e profano, de Alban Elfed e da renovação do equilíbrio e da água lúcida; o retomar do grande ciclo da Tradição Primordial, na sua antiga dimensão europeia, quiçá, universal…
[1] Gerhard J. BELLINGER, “Mégalithisme”, in Enccyclopédie des Religions, pref. de Pierre Chaunu, trad. dirigida por François Livi, La Pochotèques, Italie, 2000, p. 606. A tradução para português é nossa.
[2] Mircea Eliade e Ioan P. Couliano, “Religiões da Pré-História”, in Dicionário das Religiões, trad. de Pedro Moreira Araújo, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1993, p. 214.
[3] José Leite de VASCONCELOS, “3. Período Neolítico”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1988 [1897], vol I, nota 1, p. 63.
[4] Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANo, “Religiões da Pré-História”, in Dicionário das Religiões, trad. de Pedro Moreira Araújo, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1993, p. 215.
[5] Cf., Marija A. GIMBUTAS, Gods and Goddesses of Old Europe, 7000-3500 B.C.: Myths, Legends and Cult Images, Thames & Hudson Ldt , 1974; GIMBUTAS, The Language of the Goddess, pref. Joseph Campbell Thames & Hudson, 1989; GIMBUTAS, The Living Goddesses, University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 2001. V. ainda, Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO, “Religiões da Pré-História”, in Dicionário das Religiões, trad. de Pedro Moreira Araújo, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1993, pp. 214-215.
[6]A propósito de formas de religação entre passado e presente V. o testemunho de /|\ Red John Mc Cormac
- Ard Druid do Celtic Druid Temple, “The White Moon is Full”, in Metaxis, nº1, 1º Semestre, 2016, pp. 104-110.
[7] José Leite de VASCONCELOS, “3. Período Neolítico”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1988 [1897], vol I, p. 67.
[8] José Leite de VASCONCELOS, “Introducção Geral á Obra”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1988 [1897], vol I, pXXVI.
[9]José Leite de VASCONCELOS, “Appendice. Vestigios do Paganismo”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1989 [1913], vol III, pp. 591-626.
[10]Mais do que a autoria da frase interessa-nos sobretudo a sua recorrente popularidade e os seus usos, sobretudo em momentos de crise pátria, sobre esta questão V. por exemplo o artigo de Isabel Barros DIAS, “Não se governam, nem se deixam governar”: Perenidade da expressão da relação dos Portugueses com os seus líderes (auto e hetero-imagem, no período medieval e na atualidade), in Limite. ISSN: 1888-4067 nº 9, 2015, pp. 383-400.
[11] José Leite de VASCONCELOS, “5. Caracteres geraes dos Lusitanos”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1989 [1905], vol II, p. 95.
[12] José Leite de VASCONCELOS, “a) Conquista Romana”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1989 [1913], vol III, p. 130.
[13] José Leite de VASCONCELOS, “a) Conquista Romana”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1989 [1913], vol III, p. 143-144.
[14] Sobre esta questão V., BORGES, “Posfácio”, in VGD /|\Adgnatios , Opúsculo Teogénico, ATDL, Bubok Publising, 2016, pp. 95-98.
[15] Sobre a importância da fides romana para o Humanismo Ocidental V. Maria Helena da Rocha PEREIRA, Nas Origens do Humanismo Ocidental: Os tratados Filosóficos Ciceronianos, Conferência Proferida na Faculdade de Letras do Porto em 30 de Abril de 1985, in Revista da Faculdade de Letras [da Universidade do Porto], Línguas e Literaturas, II Série, Vol. II, Porto, p. 21- 22.
[16] José Leite de VASCONCELOS, “Considerações geraes sobre as religiões protohistoricas”, in Religiões da Lusitânia, apresent. de José Manuel Garcia, Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1989 [1913], vol III, p. 90.
[17] Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT, “Ilha”, in Dicionário Dos Símbolos, Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números, trad. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Teorema, 1994, p.374.
[18] Id., Op. Cit.,p. 374.
[19] Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT, “Druida”, in Dicionário Dos Símbolos, Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números, trad. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Teorema, 1994, p.274.
[20] Christian GUYONVARC’H e Françoise LE ROUX, Les Druides, Éditions Quest-France, Université Rennes, 1986, p. 66. A tradução é nossa.
[21] Sobre esta questão V. Gaesum BACH, “O Despertar: Como a Traição Druídica Renasceu no Século XVIII”, in Metaxis, nº1, 1º Semestre, 2016, pp. 120-133. Será necessário ter igualmente em conta que, mesmo na antiguidade e antes da Idade Média, ocorreram formas de sobrevivência e de renascimento: “A repressão dos imperadores Augusto, Tibério e Cláudio visava a eliminação do nacionalismo gaulês. E, no entanto, no século III quando a repressão romana diminuiu acentuadamente, produziu-se um surpreendente renascimento da religião céltica e os druidas recuperaram a sua autoridade. Mas é na Irlanda que os druidas, bem como as principais estruturas do génio religioso céltico conhecerá um novo apogeu na literatura elaborada de século XII em diante, em torno dos heróis envolvidos na demanda do Graal”, Mircea ELIADE,“Os Druidas e o seu Ensinamento Esotérico”, in História das Ideias e Crenças Religiosas,trad.Daniela de Carvalho e Paulo Ferreira da Cunha, Rés, Porto, vol. II, p.132.
[22] “O Druida, cuja presença, era indispensável ao sacrifício, seja como sacrificador, seja como motor imóvel da cerimónia religiosa, desapareceu como tal, com a cristianização da Irlanda. Mas pode ter subsistido sob o aspecto de poeta (file) depois da cristianização, e foi assim que a literatura irlandesa antiga nos foi transmitida”, Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT, “Sacrifício”, in Dicionário Dos Símbolos, Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números, trad. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Teorema, 1994, p.580.
[23] Segundo Rodrigues Lapa, na Cantiga de Amor se reflectiria mais marcadamente a influência provençal e na Cantiga de Amigo se manifestariam as raízes populares tradicionais autóctones, Cf. Rodrigues LAPA, Lições de Literatura Portuguesa. Época Medieval, Coimbra, 1952, p. 95.
[24] A forte componente satírica destas cantigas pode relevar também da noção de “encantamento cantado”, característica do mundo céltico e do poder druídico, Cf, Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT, “Sátira”, in Dicionário Dos Símbolos, Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números, trad. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Teorema, 1994, p.588.
[25] Até porque é mais ou menos consensual a tese da fusão entre todas estas influências, Cf. Celso Ferreira da CUNHA in Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, Porto, 1968, p. 537.
[26] M. Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa. Época Medieval, Coimbra, 1952, pp.137-138.
[27] “Segundo vários estudiosos, os trovadores da Provença foram inspirados pelo modelo da poesia Árabe de Espanha, que glorificava a mulher e o amor espiritual que ela desperta. Mas é preciso também considerar os elementos celtas. Gnósticos e orientais redescobertos ou reactualizados no século II.”, Mircea ELIADE, “Esoterismo e Criações Literárias: Trovadores, Fedeli D’Amore, O Ciclo do Graal”, in História das Ideias e Crenças Religiosas ,trad. Daniela de Carvalho e Paulo Ferreira da Cunha, Rés, Porto, vol. III, pp. 95-96. Pela nossa parte, acrescentaríamos ainda o contributo da herança pré-celta paleolítica, neolítica e, em consequência da «religião megalítica», associada ao culto da Natureza e da Deusa-Mãe, de forte implantação na «antiga Europa».
[28] Dalila PEREIRA da COSTA, “Dois Poetas do Amor Absoluto, Luís de Camões e Bernardim Ribeiro”, in A Nova Atlântida, Lello e Irmão – Editores, Porto, 1977, p. 178.
[29] Referimo-nos ao Amor Cortês emanado a partir de lugares como a corte de Eleonor da Aquitânia (sec. XII), bem como de movimentos como os Fedeli d’Amore ( que contaria representantes desde o sec, XII na Provença, Itália, França, Bélgica…). Cf. Mircea ELIADE, “Esoterismo e Criações Literárias: Trovadores, Fedeli D’Amore, O Ciclo do Graal”, in História das Ideias e Crenças Religiosas, trad.Daniela de Carvalho e Paulo Ferreira da Cunha, Rés, Porto, vol. III, p.96 .